Miguel Carqueija
Em pleno Porto Espacial de
Jacarepaguá, o Capitão Barbosa e seu imediato Zé Peroba caminhavam pela Alameda
J das lojas. Barbosa ia fazendo compras e aos poucos enchendo a sua mochila de
couro. A certa altura virou-se para o outro e indagou:
— E afinal, Peroba, você não vai
comprar nada?
— Com que dinheiro, Capitão? —
respondeu o imediato, com cara de réu.
— Ora essa, com o seu!
— Capitão Barbosa, o senhor ganha
dez vezes mais do que eu, e além disso...
— Que dez vezes o que! São só oito!
Ou você esquece que eu sou o comandante da Antaprise? Não posso ganhar salário
de mendigo!
Qualquer resposta do Peroba ficou
entalada na garganta. Barbosa prosseguiu:
— Já gastou todo o seu salário?
— Bem, capitão, sabe aquele
joguinho...
— É por isso que eu não jogo! Que
isso lhe sirva de lição! Ah, vamos ver aqueles mangás ali!
Entraram os dois numa mangazeria.
Ler quadrinhos japoneses era uma das manias do velho Barbosa. Peroba suspirou
de enfado, já preparado para passar horas naquele estabelecimento.
O velho Isolino, dono do negócio,
quase grunhiu, pois Barbosa demorava muito para escolher, ficava olhando
centenas de mangás. E realmente já estavam lá há quase uma hora quando
subitamente, ao tentar puxar um número de “Confusão cósmica”, Barbosa esbarrou
com outra mão. Voltou-se e deparou...
— Arquibaldo!
— Barbosa!
— Que faz aqui? Largue o meu mangá!
— Que quer dizer? Largue você! Eu
peguei primeiro!
— Sem essa! Eu peguei primeiro!
— É meu!
— Não, seu pilantra, é meu!
— Pilantra é você! Lembro muito bem
da barbeirada que você fez há dez anos, danificando a Antaprise...
— Você é que fez a barbeiragem! O
meu papagaio de estimação ficou gago de susto...
— Senhores, por favor — interveio o
Isolino — não rasguem a revista! Me dêem isso aqui!
Isolino pegou a revista e colocou-a
na caixa, aos cuidados da Arlete.
— Um deles vai comprar. Guarde
enquanto isso!
Zé Peroba se aproximou da caixa,
interessado em puxar conversa. Afinal, ela era uma senegalesa linda...
— Parado aí! Nem pense em se apossar
do mangá!
Peroba se virou: era o Bicudo,
primeiro oficial do Capitão Arquibaldo.
— Você também por aqui?
— E daí? Você também, não é?
— Por favor, senhores! — exclamou
implorativamente o dono do local, vendo que os quatro estavam prestes a se
engalfinharem por causa de uma revista. — Só restou esse exemplar desse número,
mas posso encomendar outro... vocês já espantaram todos os fregueses...
— Pois eu não vou esperar! Eu quero
esse! — gritou o Capitão Barbosa.
— Egoísta! Eu é que não vou esperar!
Eu quero esse!
Arquibaldo e Barbosa agarraram-se
mutuamente e foram ao chão, derrubando uma estante repleta, para maior
desespero de Isolino e pânico de Arlete e Júlia, as duas funcionárias. No
instante seguinte Zé Peroba e Bicudo também se engalfinharam.
— Parem! Ordeno que parem! Acabem
com essa briga imediatamente! Eu resolvo esse assunto!
Pararam todos instantaneamente,
espantadíssimos. Surgira uma figura estranhíssima, um sujeito alto, hirsuto,
descabelado, trajado de maneira antiquada e de aspecto feroz.
—Quem é você? — perguntou o Capitão
Barbosa, esforçando-se por se levantar.
— Ora, quem sou eu! Então não me
reconhece, Capitão Barbosa? Eu sou o famoso psiquiatra, o Doutor Mexilhão!
— Nunca ouvi falar. Por favor, não
gosto de ser interrompido quando estou brigando! Aliás, como sabe o meu nome?
— Está escrito no seu crachá!
— Ah, tá. Ora bolas! Esqueci de
guardá-lo — assim dizendo, Barbosa colocou o objeto num dos grandes bolsos da
jaqueta.
— O que quer o senhor? — quis saber
o Capitão Arquibaldo. — Não marquei nenhuma consulta, muito menos consigo.
Pondo as mãos atrás das costas o Dr.
Mexilhão, que por sinal carregava uma vasta mochila de magiplast, acercou-se
dos dois beligerantes:
— Isso não é problema, posso dar uma
contulta grátis e dupla como propaganda dos meus inestimáveis serviços. Podem
se considerar privilegiados. Você é o Capitão Arquibaldo, não é?
— Como você sabe? Não carrego nenhum
crachá.
— Está bordado na sua jaqueta.
Arquibaldo enrubesceu.
— Avisei a mamãe que não precisava
fazer isso.
— O que eu percebi é que vocês dois
são um caso preocupante de regressão milenar.
— O que quer dizer com isso? —
indagou Barbosa.
— Que vocês, sendo comandantes de
astronaves, na ponta do progresso, comportam-se como dois trogloditas, é isso
que eu quis dizer.
— Mais respeito! — exigiu o Capitão
Barbosa. — Não sabe quem eu sou? O que eu fiz?
— É claro! — e Mexilhão fungou. —
Você é o capitão que ao aterrissar com sua nave abalroou a torre de controle no
Astroporto de São Paulo...
— Bem, bem, isto é, quero dizer...
— E eu? — berrou Arquibaldo. — Eu
não sou um palhaço, sou um respeitável comandante espacial!
— Eu bem sei — disse Mexilhão,
sarcástico. — Você só pousou por engano no campo de futebol, acabou com a
partida e ainda incendiou o gramado.
— Eu... ãh... como é que você sabe?
— Sou um homem bem informado! Agora
se me dão licença, darei uma solução imediata a esse ridículo litígio e garanto
que os dois sairão daqui como amigos!
— Está bem, falastrão. Quero ver que
espécie de solução você vai dar.
— De acordo — acrescentou Barbosa.
— O que você acha? — consultou
Peroba ao Bicudo.
— Não sei. Isso está esquisito — e
Bicudo deu de ombros.
Isolino dirigiu-se ao Mexilhão:
— Meu senhor, se puder apaziguar os
ânimos eu ficarei eternamente grato!
— Não precisa tanto, então agora eu
vou agir!
Chegou para a Arlete:
— Empreste-me a revista, por favor.
Arlete, meio assustada, olhou para
Júlia, que não falou nada, depois para Isolino e este assentiu. Então ela
entregou. Barbosa e Arquibaldo, intrigados, não tiravam os olhos do barbudo
psiquiatra.
— Preciso de uma mesa vazia — rosnou
Mexilhão para Isolino.
— É pra já, senhor.
Colocou alguns livros num espaço
qualquer numa estante, e mostrou a mesa:
— Serve essa, senhor?
— É de madeira. Ótimo. Agora pode se
afastar.
Sem muita vontade de contrariá-lo o
Sr. Isolino se afastou um pouco e o médico depositou o mangá sobre a mesa.
Então pôs-se a folheá-lo.
— Não está pensando em ler o mangá,
eu presumo — observou Barbosa.
— Claro que não. Detesto mangás! Só
estou querendo achar o meio. São 240 páginas... está bem, então tem que ser na
120.
Abriu o mangá nas páginas 120-121,
deixou-o assim escancarado sobre a mesa e recuou ligeiramente. Então buscou no
interior de sua japona e lá de dentro retirou uma machadinha. E antes que
alguém pudesse — ou ousasse — detê-lo ele desceu a lâmina sobre o mangá,
partindo-o ao meio certeiramente e de quebra partindo a mesa em duas partes.
Novas pessoas que se haviam
arriscado a entrar na livraria saíram correndo. As outras sete pessoas que lá
já estavam ficaram todas congeladas e mudas. Impassível, Mexilhão guardou a
machadinha, abaixou-se, recolheu os dois pedaços da revista e aproximou-se dos
apatetados astronautas.
— Peguem! Metade para cada um!
Como em transe eles pegaram e
Mexilhão se aprumou.
— Bem, cumpri o meu dever. Agora tenho
que ir, outro dever me chama!
— Mas... mas... mas... peraí... —
balbuciou Barbosa.
— Não se preocupem! Não cobro nada
pela consulta! Foi uma amostra grátis!
Arquibaldo, ainda em estado de
choque, murmurou:
— Mas espere aí... que idéia foi
essa...
— Na verdade a idéia original não
foi minha, eu aproveitei de Salomão. Até mais, senhores e senhoritas!
Disse isso e foi embora.
Alguns segundos depois eles
começaram a acordar do aturdimento. Isolino foi o primeiro a falar:
— Alguém pode me dizer quem vai me
pagar o prejuízo?
Disse isso e desmaiou, sendo
amparado pela Júlia, a garota holandesa, que buscou os sais num dos bolsos do
infeliz livreiro.
— Capitão, vamos continuar a briga?
— indagou Zé Peroba, olhando para o Bicudo.
— É claro que não, seu idiota! Vamos
é pegar aquele calhorda! Afinal temos a obrigação de “pagá-lo” pelo excelente
serviço!
— E o que vamos fazer com isso? —
perguntou Arquibaldo. O Capitão Barbosa foi taxativo:
— Arquibaldo, decididamente eu não
quero um mangá pela metade! Pode ficar com a minha parte!
Entregou a metade do mangá para o
outro. Este, menos perfeccionista, entregou as duas metades ao Bicudo.
— Bicudo, guarde na sua mochila, eu
pego na nave! Ainda bem que eu tenho durex! Agora, Barbosa, me ajude! Vamos nós
dois atrás daquele safado e dar uma sova nele!
— É claro, amigo! Se é que vamos
conseguir encontrá-lo, ele leva grande vantagem!
— Não importa, amigo! Vamos tentar
pelo menos!
— Esperem aí! — gritou a aflita
Arlete, enquanto Júlia ligava para os paramédicos. — O mangá precisa ser pago!
— Acha mesmo — escandiu Arquibaldo —
que eu vou pagar por uma revista partida ao meio a machado? Passem bem!
— Acho melhor irmos atrás deles,
você e eu — disse Bicudo a Peroba. — Aquele maluco está armado de machadinha!
— Preferia não ir, mas você tem
razão. Não posso deixar que o meu capitão seja fatiado, por mais idiota que ele
seja!
— Vocês dois sabem qual é o pior
nisso tudo? — gemeu a Arlete.
— Não, o que? — disseram eles em
uníssono.
— Muito simples. Tenho certeza que
este nosso desacordado patrão quando acordar vai descontar o mangá do nosso
ordenado!
— Que já é uma miséria — completou a
Júlia.
— Vamos rachar a despesa — disse
Peroba, incapaz de resistir ao choro de duas garotas. — Bicudo, você dá a sua
parte?
Eles rapidamente pagaram e Arlete
agradeceu mas ainda perguntou:
— Mas e a mesa?
Os dois se entreolharam.
— Ah, não! — disse o Bicudo. —
Ninguém vai levar a mesa! Vocês se entendem com o Isolino!
Bicudo e Peroba saíram correndo,
tentando encontrar os capitães.
— Numa coisa pelo menos o malucão
estava certo — lembrou Zé Peroba.
— Em que?
— Ora! Que os dois iam sair daqui
como amigos!
NOTA –
Chama-se “curva de argumento” uma figura literária que consiste numa súbita e
radical mudança de rumo numa história, com o surgimento imprevisto de um novo
fato ou personagem, como neste caso, com a inusitada aparição do Doutor
Mexilhão. Ele tem sua própria série e esta é a primeira vez que interage com o
Capitão Barbosa.
Imagem Pixabay.
Rio de
Janeiro, 13 de março a 3 de abril de 2020.